um corpo que cai / a espiral da paixão








Um corpo que cai, de Alfred Hitchcock, 1958, foi filmado em 70mm, com sofisticadas técnicas de cor e exibido em VistaVision, o mais avançado sistema de tela gigante, em sua época; últimos cartuchos com que Hollywood tentava enfrentar a expansão da TV, no final da era dos estúdios.
  
Com todos esses recursos, usados à maestria pelo mestre do suspense, Um corpo que cai é um dos mais belos e desesperados poemas de amor que o cinema jamais filmou; uma das mais densas e profundas explorações da paixão amorosa, com tudo que ela traz de idealização, de obsessão e de possessão. 

Nessa exploração, Um corpo que cai remete a antigas lendas de amor que fazem parte do inconsciente coletivo. E isso, ao lado da universalidade desse tema, contribui fortemente para o apelo desse filme junto ao público. 
  
Um corpo que cai nos coloca frente a frente com a idealização do outro, característica marcante das relações afetivas. Nisso, evoca a lenda grega do escultor Pigmalião, que talha uma mulher em marfim e se apaixona por ela. E vai a fundo na questão, colocando a mulher ideal como fabricação, ilusão e, no extremo, como farsa grotesca.

Em sua obsessão, a relação amorosa de Um corpo que cai remete a outra lenda, a de Tristão e Isolda, onde um cavaleiro medieval e a esposa de seu rei tomam uma poção de amor e se entregam a uma paixão proibida e sem barreiras. 

Richard Wagner (1813-1883) levou essa lenda à tragédia, na ópera de mesmo nome, fortemente influenciado pelo filosofo Arthur Schopenhauer (1788-1860),  para quem os desejos superam a razão, desorientam o homem e levam à dor e ao sofrimento, porque são insaciáveis.

Uma a uma, as personagens de Um corpo que cai são possuídas pelo objeto da paixão e perdem a identidade própria, o que é uma espécie de morte. Ou lutam para  resgatá-lo da perda, o que, no fundo, é uma tentativa de resgatá-lo da morte, como explica o psicanalista Igor Caruso (1914-1981). E como fez o poeta grego Orfeu, que, inconformado com a perda de sua amada, foi buscá-la de volta no inferno. 

Não por menos, Um corpo que cai foi extraído da novela Dentre os mortos, de Pierre Louis Boileau (1906-1989) e Thomas Narcejac (1908-1998). A trama oscila o tempo todo entre a vida e a morte, entre Eros e Tânatos, porque a morte faz parte da vida e é uma dívida nossa com a Natureza, como explica Sigmund Freud (1856-1939) em seu ensaio Além do princípio do prazer.

Ao mesmo tempo, o filme é um retrato de sua época, ainda conservadora nos costumes, às vésperas da revolução sexual e da emancipação feminina. É nesse contexto que as personagens masculinas repetem, de diversos pontos de vista, a expressão “poder e liberdade”, referindo-se aos tempos em que o homem, como centro das decisões, detinha a autonomia nas relações com a mulher.

Outro fator que contribui para o apelo desse filme junto ao público é misturar essa discussão, com seus diferentes pontos de vista, aos sentimentos contraditórios da personagem principal, o policial Scott, que se perde numa paixão devastadora.

Nós nos identificamos com esse homem, acessível e humano; com suas aspirações pessoais; com seu caráter, amabilidade e solidariedade. Nós nos identificamos com sua paixão por Madeleine, mulher inatingível. E compreendemos sua fragilidade, sua vulnerabilidade e seus defeitos como algo que todos nós podemos ter.

Como antigo diretor de filmes mudos, Hitchcock via um filme como um meio visual, no qual as imagens deveriam conduzir a narrativa, É o que ele faz, numa longa sequência  sem palavras, em que Scott vê Madeleine num restaurante e, depois, a segue pelas ruas de São Francisco.
 
Nessa sequência se desenvolve a fascinação de Scott por Madeleine,  contemplando-a como um camafeu precioso ou mergulhada num quadro de museu; vendo-a desaparecer e reaparecer num passeio errático e misterioso pela cidade.  
  
O filme é inteiramente dominado pelo ponto de vista de Scott, desde a sequência inicial, buscando equilíbrio num terreno hostil e encarando a morte de frente, até a busca desesperada de Madeleine,  enquanto mulher de seus sonhos e enquanto pura imagem, na espiral da paixão. 
  
O ponto de vista de Scott é dado, o tempo todo, pelo movimento da câmara.. Com os olhos dele, ela sai em busca de de Madeleine. Com os olhos da câmara, ele  vê a morte de frente e o caminho inapelável que poderia ser o seu.

Na grande cena de amor, ele vê Madeleine surgir de uma bruma de neon, a câmara os envolve num pas-de-deux  e ele a abraça, inanimada, sob um poderoso tema de amor que o autor da trilha, Bernard Herrmann foi buscar no Liebestod de Tristão e Isolda. 

O apelo de público de Um corpo que cai também se deve à hábil manipulação da narrativa por parte de Hitchcock.  A trama é cheia de incoerências e fatos mal explicados. Na verdade, a vida está cheia deles, diz o diretor. Só que o público exige das tramas uma racionalidade que ela não têm. Mas não sairia de casa para assistir a uma história realista, porque já tem isso de sobra em seu cotidiano.


Outro ponto importante na manipulação da narrativa é que, no segundo terço do filme, o diretor desvenda o mistério para o público, mas não para a personagem, E, mesmo sabendo de tudo, o público continua vendo o filme, para saber como ela vai reagir.   

Só que, ao invés de fechar a história com tudo resolvido, Hitchcock a deixa em aberto. A personagem principal toma consciência do que aconteceu, mas o que ela fará diante disso fica no terreno da especulação.  E haja especulação.

Hitchcock conta Um Corpo que cai com o uso de luz e sombra e de cenários e locações como recursos expressivos, como aprendeu com Friedrich Murnau e Fritz Lang,  quando trabalhou nos estúdios da UFA, no auge do expressionismo alemão. 

Um corpo que cai também pontua á história com uma rica simbologia. Espelhos, poços, corredores, túneis e escadas evocam a passagem entre a vida e a morte. A cor verde evoca a morte, como a cor do fogo-fátuo, o fogo dos que morrem. 

E o símbolo maior da trama é a espiral, que abre o filme e marca seus momentos essenciais, as quedas no vazio, o coque de Madeleine, as escadas, a grande cena de amor; num movimento circular e contínuo que lembra o redemoinho dos sentimentos, a vertigem dos sentidos, o comportamento repetitivo da obsessão amorosa. Não por menos, o nome original do filme é Vertigo.

A própria trama do filme é em espiral, falando da paixão, da perda e do resgate que leva a outra perda, num movimento que segue ad infinitum.

O apelo de público de Um corpo que cai se dá, ainda, pela trilha sonora. A abertura, em círculos, evoca a espiral que resume a trama. O tema de amor se volta sobre si mesmo, como em Tristão e Isolda, expressando a obsessão e a angústia de Scott.

Um corpo que cai virou filme cult, para os críticos da Cahiers du Cinéma, que  resgataram Hitchcock do mainstream de Hollywood, entronizaram-no no cinema de autor e promoveram sua obra ao que é considerada hoje.

Um corpo que cai influenciou nouvelle vague, na trama, símbolos e detalhes estilísticos de filmes como O ano passado em Marienbad, de Alain Resnais e A Sereia do Mississipi, de FrançoisTruffaut,

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