cidadão kane / quando o cinema é eterno




Cidadão Kane, de Orson Welles (1915-1985), lançado em 1941 pela RKO Pictures, é amplamente considerado pela crítica como o maior filme de todos os tempos, pela inventividade nas tomadas de câmara, nos efeitos especiais, na montagem, na encenação, na música e na narrativa.

Cidadão Kane ocupa essa posição em várias listas canônicas de filmes, elaboradas pela imprensa especializada e por instituições como o American Film Institute (v. Notas (1).

Em 1989, a Biblioteca do Congresso norte-americano declarou Cidadão Kane como obra de significado cultural, histórico e estético e o selecionou para preservação no Registro Nacional de Filmes. 

Fama

Orson Welles chegou a Hollywood numa esteira de sucesso. Já era conhecido, no teatro da Broadway, como talentoso ator e diretor shakespeariano. E vinha com a fama do radioteatro, onde havia montado A Guerra dos Mundos, de H.G.Wells (1866-1946), em 1938, numa encenação polêmica que levou ao pânico de uma invasão marciana.

Seu contrato com a RKO Radio Pictures foi assinado em 1939, para dois filmes, dando a ele total autonomia sobre o desenvolvimento da história, a escalação dos atores e da equipe técnica e a versão final das obras, privilégio que o sistema de estúdios só concedia a diretores consagrados. 

Seu primeiro projeto de cinema foi O Coração das Trevas, sobre a novela de Joseph Conrad (1857-1924), vetado pelos custos e por sua exigência de filmar com câmara subjetiva. 


Outro projeto foi O homem sorridente com a faca, sobre a novela de Cecil Day Lewis (1904-1972), mas a essa altura Welles percebeu que, para se lançar no cinema, teria que apresentar um tema completamente original. E, para isso, procurou Herman Mankiewicz (1897-1953), um dos roteiriestas mais inteligentes e respeitados de Hollywood. 

Kane

Mankiewicz já pensava há algum tempo num filme sobre uma figura pública - um gângster, por exemplo -  narrado pelas personagens que a haviam conhecido. E já havia escrito, a esse respeito, a  peça não-encenada  The tree will grow (A árvore vai crescer). 

Welles gostou da idéia de contar a história de uma personagem sob vários pontos de vista, mas não a de um gângster: queria alguém que encarnasse o sonho americano – o do empreendedor que atinge o sucesso pela iniciativa individual, numa terra de oportunidade para todos (v.Notas (2).

Para isso, pensou em Howard Hughes (1905-1976), em outros empresários importantes e acabou chegando, junto com Mankiewicz, ao magnata da imprensa William Randolph Hearst 91863-1951) (v.Notas (3).   


Contestação

Ao mesmo tempo, havia na época de Welles uma parcela influente da inteligência americana que não poupava críticas ao sonho americano, por seu custo ético e duvidava de sua realização como idéia social. 


Arthur Miller (1915-2005), em A morte de um caixeiro-viajante, falava dos que não chegavam a essa realização, porque a trajetória das pessoas dependia muito mais dos grandes interesses econômicos do que da iniciativa pessoal.  

F.Scott Fitzgerald (1896-1940), em O grande Gatsby, falava do materialismo, da hipocrisia, do cinismo e da falta de escrúpulos que levavam à decadência de uma elite americana envolvida com a corrupção.  
  
Foi assim que, tomado pela inquietude e pelas idéias progressistas, Welles mostrou Kane como alguém que se iniciou no jornalismo cheio de ideais nobres, mas se esqueceu deles para chegar à riqueza e ao poder. E terminou a vida num castelo sombrio, abandonado pelas pessoas e cercado por uma multidão fantasmagórica de objetos. 


Boicote

Ao tomar conhecimento de Cidadão Kane e da interpretação que fazia de sua figura, William Hearst abriu uma guerra  contra o filme, tentando destruí-lo, banindo-o de seus jornais e pressionando os cinemas a não exibi-lo. (v.Imagens)


A muito custo, o filme foi exibido em grandes cidades, mas boicotado na maioria do território americano, o que prejudicou enormemente seu desempenho comercial.

Apesar disso, a recepção do filme foi bastante positiva, por parte da crítica e do público que o viu embora sob o questionamento de algumas de suas inovações.  

Em 1942, Cidadão Kane foi indicado a nove Oscars, como melhor filme, diretor e ator (Orson Welles), cinegrafia em preto e branco (Gregg Toland), roteiro (Orson Welles e Hermann Mankiewicz), trilha sonora (Bernard Herrmann), montador (Robert Wise), direção de arte (Perry Ferguson, Roland Fields, Van Nest Polglase e Darrel Silvera) e edição de som (John Aalberg).

No entanto, os Oscars de filme e direção foram para Como era verde meu vale, de John Ford (1894-1973) e o de ator foi para Gary Cooper, por Sargento YorkCidadão Kane recebeu vaias a cada indicação e levou apenas a estátua de melhor roteiro, mostrando que  Hollywood preferia vê-lo longe a enfrentar a ira de William Hearst.   


Rejeição
 
David Nasaw, biógrafo de Hearst, diz no entanto que o fracasso comercial de Cidadão Kane não se deu apenas pelo boicote de Hearst. 


Segundo ele, a recepção do filme foi bastante positiva, por parte da crítica e do público que o viu. 

Mas a maioria o rejeitou, pelas inovações radicais e pela mensagem de que a busca do sucesso é uma busca perversa, batendo de frente com uma visão positiva do empreendedorismo que é profundamente enraizada na cultura americana. 

George Schaefer (1888-1981), presidente da RKO e grande protetor de Welles, renunciou ao cargo em 1942. Com isso, o estúdio havia respeitado seu direito à versão final de Cidadão Kane, mas o violou em Soberba, o segundo e último trabalho de seu contrato, impondo-lhe um final feliz. 


Acolhida

Por volta de 1942, Cidadão Kane encerrou seu ciclo de exibições nos EUA. Durante a II Guerra,  foi pouco visto e virtualmente esquecido. 


Em 1946, no entanto, o filme foi lançado na Europa, onde recebeu considerável acolhida.

Essa acolhida veio principalmente de críticos franceses como André Bazin, editor da revista Cahiers du Cinéma. onde escreviam François Truffaut (1932-1984) e Jean-Luc Godard (1930), futuros cineastas e mentores da nouvelle-vague.

Nos EUA, o filme continuou esquecido até o lançamento na TV, em 1956, quando a RKO disponibilizou seu acervo para esse veículo e o relançamento em Nova York, quando o renomado crítico Andrew Sarris o elevou às alturas.

Nas décadas seguintes, Cidadão Kane foi tema de importantes resenhas, estudos em profundidade e ensaios como o da célebre crítica americana Pauline Kael (1919-2001), contestado de forma polêmica por outro grande crítico, Andrew Sarris (1928) (v. links abaixo, em Análises).  


O consagrado Erich von Stroheim, um dos maiores diretores do cinema mudo, dedicou uma crítica ao filme. O próprio Orson Welles escreveu sobre Cidadão Kane, questionando a ligação da personagem com William Hearst. O escritor Gore Vidal relembrou a carreira de Welles e seu encontro com ele, no ocaso da carreira (v. links abaixo, em Análises). 

No resto do mundo, Cidadão Kane passou a ser considerado um dos filmes mais importantes da história do cinema. A partir de 1962, não deixou mais a lista da importante revista inglesa Sight and Sound como o maior de todos os filmes.  

The end

Mesmo com o sucesso de Cidadão Kane entre os críticos, crítica, Welles não encontrou mais trabalho fixo em Hollywood e passou a um lugar secundário na indústria do cinema.  

De 1948 até o final da vida, em 1985, ficou entre Hollywood e a Europa,  trabalhando como ator em outros filmes, principalmente em pontas e financiando sua produção com recursos próprios, de amigos ou de estúdios pequenos.
 
Welles disse, certa vez, que tinha começado sua carreira pelo topo, para terminar na decadência. Mas, com Cidadão Kane, tornou-se uma lenda viva do cinema e viveu o suficiente para ver esse filme reconhecido como o maior de todos os clássicos da tela.  


Criação

Apoiado em Gregg Toland (1904-1948), um dos cinegrafistas mais importantes de sua época e no montador Robert Wise (1914-2005), mais tarde grande diretor de Hollywood, Welles trouxe a Cidadão Kane grandes inovações nos recursos especiais, na edição e nas tomadas de câmara, com destaque especial para o foco profundo. (v. Imagens).

  
Em Cidadão Kane, Welles juntou esses recursos aos do teatro, onde atuou antes de chegar ao cinema, principalmente na direção de atores. (4).


Na composição de cena, Orson Welles usou referências da arte barroca (v.Imagens). Usou, também, técnicas do expressionismo alemão, uma das estéticas que mais influenciaram o cinema de Hollywood, nos anos 1930- 1940, principalmente nos filmes noir e de horror. (v.Imagens). 

Na direção de arte, empregou uma profusão de referências da história da arquitetura, que se encontram principalmente na concepção interna e externa de Xanadu, o castelo onde vivia o Cidadão Kane.
(v.Imagens)


A riqueza e a diversidade dessas referências também evocam poderosamente o Hearst Castle, castelo real que William Hearst construiu para si na Califórnia, entre os anos 1929 e 1940 e que sobreviveu como monumento histórico a seu poder(v. abaixo em Referências).   

Essas referências também foram usadas, com uma fantástica criatividade, para enfrentar a falta de recursos do orçamento que estourou, como acontece na concepção do Grande Salão de Xanadu, trazendo à tona sua força como homem de teatro. (v.Imagens).
 
Welles também trouxe do teatro um excepcional timing dramático, como na abertura da ópera estrelada pela amante de Kane, onde toda a grandiosidade da produção é mostrada nos segundos finais para a abertura do pano. 

Ao mesmo tempo, ancorado na sólida experiência do radioteatro, Orson Welles atuou com igual desenvoltura na sonorização do filme. 

A trilha sonora de Cidadão Kane foi entregue ao grande compositor Bernard Herrmann (1911-1975), mais tarde celebrado por sua colaboração com o mestre do suspense Alfred Hitchcock (1899-1980). 


Hermann criou para o filme temas de extrema sofisticação, inspirados em George Gershwin (1898-1937), Richard Strauss (1864-1949) e Richard Wagner (1813-1883). (v.Imagens)

As poucas externas foram feitas no Parque Balboa, em San Diego, na Califórnia; no Zoológico de San Diego e no palácio Oheka, do milionário americano Oto Herman Kahn, em Huntington, Nova York;  todas elas compondo a visão de Xanadu, o castelo de Kane, mostrada no cinejornal sobre sua morte, que abre o filme. O resto são cenários e maquetes.


Segundo uma planilha de custos da RKO, Cidadão Kane ficou em 839.727 dólares, contra um orçamento inicial de 723,800 dólares. Maior parte da filmagem se deu  de junho a outubro de 1940, no que hoje é o Estúdio 19 da Paramount, em Hollywood.   


Legado

Cidadão Kane teve uma visível influência sobre o filme noir, a partir de A Chama Eterna, de George Cukor (1899-1983), 1942, com Spencer Tracy e Katharine Hepburn.

Diretores como Steven Spielberg (1946), Martin Scorsese (1942), Ridley Scott (1937), Francis Ford Coppola (1939), Stephen Frears (1941), Brian de Palma (1940), John Frankenheimer (1930-2002), Ethan (1957) e Joel Coen (1954), Sergio Leone (1929-1989) e Luc Besson (1959) falam da influência desse filme em seu trabalho. 



A estrutura de Cidadão Kane influenciou filmes como Lawrence da Arábia, de David Lean (1908-1991), 1962; Mishima, de Paul Schrader (1946), 1985 e Mr. Arkadin, do próprio Welles, 1955, que partem da morte do protagonista e mostram sua vida em flashback.

Na década de 1980, a memória do filme começou a ser comprada por colecionadores de fetiches cinematográficos. O diretor Steven Spielberg comprou o último exemplar do trenó Rosebud,  a cópia do roteiro pertencente a Welles foi leiloada e o Oscar recebido pelo filme está à busca de um comprador. (v.Imagens).

Sentidos

 
Para desenvolver o enredo de Cidadão Kane, Welles e Mankiewicz recorreram à chamada narrativa à clef, onde a vida é tratada como ficção, carregando nas tintas e permitindo licenças.

O filme é todo contado em flashbacks e em fragmentos, sem nenhuma ordem cronológica, sob vários pontos de vista e por diferentes narradores, suspeitos e contraditórios entre si. E o final da história leva o espectador a repensar o que viu.   

Cidadão Kane lança um mistério, o de todo homem, o de cada vida, que pode ter infinitas interpretações. Ninguém, por exemplo, vê Kane morrer e o filme todo pode ter sido seu último pensamento, numa derradeira demonstração de sua maestria para manipular a realidade à volta. 

Segundo Jorge Luís Borges, Cidadão Kane investiga o interior de um homem, através do que ele deixou, das palavras que disse e das  vidas que arruinou (v. link abaixo, em Análises).

Essa investigação, continua o escritor, traz fragmentos da vida desse homem e nos convida a combiná-los para reconstruir sua figura. Mas, ao final, esses fragmentos não formam um sentido. 

No filme, um jornalista que sai em busca desse sentido conclui que a vida de um homem não pode ser reduzida a uma palavra. E, se existir essa palavra, será uma peça perdida de um quebra-cabeça. Como aquele que Susan tenta montar, incansavelmente, no Grande Salão de Xanadu. 


Referências 

Hearst Castle (https://en.wikipedia.org/wiki/Hearst_Castle)

 Análises

Andrew Sarris, Citizen Kael vs. Citizen Kane

Erich Von Stroheim, Citizen Kane
Gore Vidal, Remembering Orson Welles
Jorge Luís Borges, Labirinto Kane  
Orson Welles, Was Citizen Kane really about Hearst?
Pauline Kael, Raising Kane


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